domingo, 22 de fevereiro de 2015

OS NACIREMAS

                                                
                                         OS NACIREMAS

Horace Miner In: A.K. Rooney e P.L. de Vore (orgs) YOU AND THE OTHERS - Readings in Introductory Anthropology (Cambridge, Erlich) 1976
   O antropólogo está tão familiarizado com a diversidade das formas de comportamento que diferentes povos apresentam em situações semelhantes, que é incapaz de surpreender-se mesmo em face dos costumes mais exóticos. De fato, se nem todas as as combinações logicamente possíveis de comportamento foram ainda descobertas, o antropólogo bem pode conjeturar que elas devam existir em alguma tribo ainda não descrita.
   Deste ponto de vista, as crenças e práticas mágicas dos Nacirema apresentam aspectos tão inusitados que parece apropriado descrevê-los como exemplo dos extremos a que pode chegar o comportamento humano. Foi o Professor Linton, em 1936, o primeiro a chamar a atenção dos antropólogos para os rituais dos Nacirema, mas a cultura desse povo permanece insuficientemente compreendida ainda hoje.
   Trata-se de um grupo norte-americano que vive no território entre os Cree do Canadá, os Yaqui e os Tarahumare do México, e os Carib e Arawak das Antilhas. Pouco se sabe sobre sua origem, embora a tradição relate que vieram do leste. Conforme a mitologia dos Nacirema, um herói cultural, Notgnihsaw, deu origem  à sua nação; ele é, por outro lado, conhecido por duas façanhas de força: ter atirado um colar de conchas, usado pelos Nacirema como dinheiro, através do rio Po- To- Mac e ter derrubado uma cerejeira na qual residiria o Espírito da Verdade.  
   A cultura Nacirema caracteriza-se por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que evolui em um rico habitat. Apesar do povo dedicar muito do seu tempo às atividades econômicas, uma grande parte dos frutos deste trabalho e uma considerável porção do dia são dispensados  em atividades rituais. O foco destas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde surgem como o interesse dominante no ethos deste povo. Embora tal tipo de interesse não seja, por certo, raro, seus aspectos cerimoniais e a filosofia a eles associadas são singulares.  
   A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é repugnante e que sua tendência natural  é para a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é desviar estas características através do uso das poderosas influências do ritual e do cerimonial. Cada moradia tem um ou mais santuários devotados a este propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm muitos santuários em suas casas e, de fato, a alusão  à opulência de uma casa, muito frequentemente, é feita em termos do número de tais centros rituais que possua. Muitas casas são construções de madeira, toscamente pintadas, mas as câmeras de culto das mais ricas têm paredes de pedra. As famílias mais pobres imitam as ricas, aplicando placas de cerâmica  às paredes de seu santuário.  
   Embora cada família tenha pelo menos um de tais santuários, os rituais a eles associados não são cerimônias familiares, mas sim cerimônias privadas e secretas. Os ritos, normalmente, são discutidos apenas com as crianças e, neste caso, somente durante o período em que estão sendo iniciadas em seus mistérios. Eu pude, contudo, estabelecer contato suficiente com os nativos para examinar estes santuários e obter descrições dos rituais.  
   O ponto focal do santuário é uma caixa ou cofre embutido na parede. Neste cofre são guardados os inúmeros encantamentos e poções mágicas sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais preparados são conseguidos através de uma serie de profissionais especializados, os mais poderosos dos quais são os médicos-feiticeiros, cujo auxilio deve ser recompensado com dádivas substanciais. Contudo, os médicos-feiticeiros não fornecem a seus clientes as poções de cura; somente decidem quais devem ser seus ingredientes e então os escrevem em sua linguagem antiga e secreta. Esta escrita é entendida apenas pelos médicos-feiticeiros e pelos ervatários, os quais, em troca de outra dadiva, providenciam o encantamento necessário. Os Nacirema não se desfazem do encantamento após seu uso, mas os colocam na caixa-de-encantamento do santuário doméstico. Como tais substâncias mágicas são especificas para certas doenças e as doenças do povo, reais ou imaginárias, são muitas, a caixa-de-encantamentos está geralmente a ponto de transbordar. Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem quais são suas finalidades e temem usá-los de novo. Embora os nativos sejam muito vagos quanto a este aspecto, só podemos concluir que aquilo que os leva a conservar todas as velhas substâncias é a ideia de que sua presença na caixa-de-encantamentos, em frente à qual são efetuados os ritos corporais, irá, de alguma forma, proteger o adorador.  
   Abaixo da caixa-de-encantamentos existe uma pequena pia batismal. Todos os dias cada membro da família, um após o outro, entra no  santuário, inclina sua fronte ante a caixa-de-encantamentos, mistura diferentes tipos de águas sagradas na pia batismal e procede a um breve rito de ablução. As  águas sagradas vêm do Templo da Água da comunidade, onde os sacerdotes executam elaboradas cerimônias para tornar o líquido ritualmente puro.  
Chefe IndianoNa hierarquia dos mágicos profissionais, logo abaixo dos médicos-feiticeiros no que diz respeito ao prestígio, estão os especialistas cuja designação pode ser traduzida por "sagrados-homens-da-boca". Os Nacirema têm um horror quase que patológico, e ao mesmo tempo fascinação, pela cavidade bucal, cujo estado acreditam ter uma influência sobre todas as relações sociais. Acreditam que, se  não fosse pelos rituais bucais seus dentes cairiam, seus amigos os abandonariam e seus namorados os rejeitariam. Acreditam também na  existência de uma forte relação entre as características orais e as morais: Existe, por exemplo, uma ablução ritual da boca para  as crianças que se supõe aprimorar sua fibra moral.  
   O ritual do corpo executado diariamente por cada Nacirema inclui  um rito bucal. Apesar de serem tão escrupulosos no cuidado bucal, este rito envolve uma prática que choca o estrangeiro não iniciado, que só pode considerá-lo revoltante. Foi-me relatado que o ritual consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na boca juntamente com certos pós mágicos, e em movimentá-lo então numa série de gestos altamente formalizados. Além do ritual bucal privado, as pessoas procuram o mencionado sacerdote-da-boca uma ou duas vezes ao ano. Estes profissionais  têm uma impressionante coleção de instrumentos, consistindo de brocas, furadores, sondas e aguilhões. O uso destes objetos no exorcismo dos demônios bucais envolve, para o cliente, uma tortura ritual quase inacreditável.  O sacerdote-da-boca abre a boca do cliente e, usando os instrumentos acima citados, alarga todas as cavidades que a degeneração possa ter produzido nos dentes. Nestas cavidades são colocadas substâncias mágicas. Caso não existam cavidades naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são extirpadas  para que a substância natural possa ser aplicada. Do ponto de vista do cliente, o propósito destas aplicações é tolher a degeneração e  atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do rito evidencia-se pelo fato de os nativos voltarem ao sacerdote-da-boca ano após ano, não obstante o fato de seus dentes continuarem a degenerar.
   Esperemos que quando for realizado um estudo completo dos Nacirema haja um inquérito cuidadoso sobre a estrutura da personalidade destas pessoas, Basta observar o fulgor nos olhos de um sacerdote-da- boca, quando ele enfia um furador num nervo exposto, para se suspeitar que este rito envolve certa dose de sadismo. Se isto puder ser provado, teremos um modelo muito interessante, pois a maioria da população demonstra tendências masoquistas bem definidas.  
   Foi a estas tendências que o Prof. Linton (1936) se referiu na discussão de uma parte específica dos ritos corporal que é desempenhada apenas por homens. Esta parte do rito envolve raspar e lacerar a superfície da face com um instrumento afiado. Ritos especificamente femininos  têm lugar apenas quatro vezes durante cada mês lunar, mas o que lhes falta em frequência é compensado em barbaridade. Como parte desta cerimônia, as mulheres usam colocar suas cabeças em pequenos fornos por cerca de uma hora. O aspecto teoricamente interessante é que um povo que parece ser preponderantemente masoquista tenha desenvolvido especialistas sádicos.  
   Os médicos-feiticeiros têm um templo imponente, ou latipsoh, em cada comunidade de certo porte. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para tratar de pacientes muito doentes, só podem ser executadas neste templo. Estas cerimônias envolvem não apenas o taumaturgo, mas um grupo permanente de vestais que, com roupas e toucados específicos, movimentam-se serenamente pelas câmaras do templo.  
   As cerimonias latipsoh são tão cruéis que é de surpreender que uma boa proporção de nativos realmente doentes que entram no templo se recuperem. Sabe-se que as crianças pequenas, cuja doutrinação ainda é incompleta, resistem  às tentativas de levá-las ao templo, porque "é lá que se vai para morrer". Apesar disto, adultos doentes não apenas querem mas anseiam por sofrer os prolongados rituais de purificação, quando possuem recursos para tanto. Não importa quão doente esteja o suplicante ou quão grave seja a emergência, os guardiões de  muitos templos não admitirão um cliente se ele não puder dar uma  dádiva valiosa para a administração. Mesmo depois de ter-se conseguido a admissão, e sobrevivido às cerimônias, os guardiães não permitirão ao neófito abandonar o local se ele não fizer outra doação.  
   O suplicante que entra no templo é primeiramente despido de todas as suas roupas. Na vida cotidiana o Nacirema evita a exposição de seu corpo e de suas funções naturais. As atividades excretoras e o banho, enquanto parte dos ritos corporais, são realizados apenas no segredo do santuário doméstico. Da perda súbita do segredo do corpo quando da entrada no latipsoh, podem resultar traumas psicológicos. Um homem, cuja própria esposa nunca o viu em um ato excretor, acha-se subitamente nu e auxiliado por uma vestal, enquanto executa suas funções naturais num recipiente sagrado. Este tipo de tratamento cerimonial é necessário porque os excreta são usados por um adivinho para averiguar o curso e a natureza da enfermidade do cliente. Clientes do sexo feminino, por sua vez, têm seus corpos nus submetidos ao escrutínio, manipulação e aguilhadas dos médicos-feiticeiros.  
   Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bons para fazer qualquer coisa além de jazer em duros leitos. As cerimônias diárias, como os ritos do sacerdote-da-boca, envolvem desconforto e tortura. Com precisão ritual as vestais despertam seus miseráveis fardos a cada madrugada e os rolam em seus leitos de dor enquanto executam abluções, com os movimentos formais nos quais estas virgens são altamente treinadas. Em outras horas, elas inserem bastões mágicos na boca do suplicante ou o forçam a engolir substâncias que se supõe serem curativas. De tempos em tempos o médico-feiticeiro vem ver seus clientes e espeta agulhas magicamente tratadas em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo possam não curar, e possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a fé das pessoas no médico feiticeiro.  
   Resta ainda um outro tipo de profissional, conhecido como um "ouvinte". Este "doutor-bruxo" tem o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas enfeitiçadas. Os Nacirema acreditam que os pais enfeitiçam seus próprios filhos; particularmente, teme-se que as mães lancem uma maldição sobre as crianças enquanto lhes ensinam os ritos corporais secretos. A contra-magia do doutor bruxo é inusitada por sua carência de ritual. O paciente simplesmente conta ao "ouvinte" todos os seus problemas e temores, principalmente pelas dificuldades iniciais que consegue rememorar. A memória demonstrada pelos Nacirema  nestas sessões de exorcismo é verdadeiramente notável. Não é incomum  um paciente deplorar a rejeição que sentiu, quando bebê, ao ser desmamado, e uns poucos indivíduos reportam a origem de seus problemas aos feitos traumáticos de seu próprio nascimento.  
  Como conclusão, deve-se fazer referência a certas práticas que têm suas bases na estética nativa, mas que decorrem da aversão profunda ao corpo natural e suas funções. Existem jejuns rituais para tornar magras pessoas gordas, e banquetes cerimoniais para tornar gordas pessoas magras. Outros ritos são usados para tornar maiores os seios das mulheres que os têm pequenos e torná-los menores quando são grandes. A insatisfação geral com o tamanho do seio é simbolizada no fato de a forma ideal estar virtualmente além da escala de variação humana. Umas poucas mulheres, dotadas de um desenvolvimento hipermamário quase inumano, são tão idolatradas que podem levar uma boa vida simplesmente indo de cidade em cidade e permitindo aos embasbacados nativos, em troca de uma taxa, contemplarem-nos.  
   Já fizemos referência ao fato de que as funções excretoras são ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao segredo. As funções naturais de reprodução são, da mesma forma, distorcidas. O intercurso sexual é tabu enquanto assunto, e  é programado enquanto ato. São feitos esforços para evitar a gravidez, pelo uso de substâncias mágicas ou pela limitação do intercurso sexual a certas fases da lua. A concepção é na realidade, pouco frequente. Quando grávidas as mulheres vestem-se de modo a esconder o estado. O parto tem lugar em segredo, sem amigos ou parentes para ajudar, e a maioria das mulheres não amamenta seus rebentos.  
   Nossa análise da vida ritual dos Nacirema certamente demonstrou ser este povo dominado pela crença na magia. É difícil compreender como tal povo conseguiu sobreviver por tão longo tempo sob a carga que impôs sobre si mesmo. Mas até costumes tão exóticos quanto estes aqui descritos ganham seu real significado quando são encarados sob o ângulo relevado por Malinowski, quando escreveu:  
"Olhando de longe e de cima de nossos altos postos de segurança na civilização desenvolvida, é fácil perceber toda a crueza e irrelevância da magia. Mas sem seu poder de orientação, o homem primitivo não poderia ter dominado, como o fêz, suas dificuldades práticas, nem poderia ter avançado aos estágios mais altos da civilização"


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sábado, 7 de fevereiro de 2015

                                           O VISITANTE INOPORTUNO

   Aquele era um dos verão mais quente que eu já tinha passado, as folhas dos arbustos estavam murchas pelo sol escaldantes. Já fazia mais de uma hora que estávamos escondidos naquela moita de arbusto, os mosquitos já tinha chupado todo o meu sangue, olhei para a minha perna, lá estava um vermelho com meu pobre sangue, mirei minha mão, porém a segurei no ar com o olhar de reprovação do meu pai.
­ — Não faça barulho, posso ouvir o barulho de um chegando. Como podia ouvir alguma coisa com o barulho da floresta, o vento começava ficar mais forte, indicando que haveria temporal se aproximando, os passarinhos estavam agitados com suas cantorias, os galhos das árvores, chocavam violentamente um contra o outro. Minha perna já estava amortecida, pois estava de joelho todo aquele tempo, meu estava na minha frente na mesma posição, segurando a lança, se é que podia chamar assim aquilo, era uma vara torta, com uma lasca de pedra amarada com cipó. Era tempos difíceis, o rei tinha mandado os senhores recolher todo os metais aos redores, em tempo de guerra, qualquer pedaço de metal podia virar uma arma para o exército.
 — Esta vendo aquela trilha? É ali que ele vai passar, vou dar a volta por aquelas árvores, quando o avistar, pule na sua frente, eu o surpreenderei por traz.
  Eu somente o olhei, porém na minha mente já me via correndo com ele atrás de mim, tinha naquela época dez anos, contudo como toda criança do meu tempo, em virtude da fome que assolava, era bem raquítica, mal tinha força para erguer minhas pernas ao caminhar, quanto mais se fosse necessário correr.
  Meu pai se arrastou pelo chão entre os arbustos, olhei ao meu redor e notei que estava agora sozinho, o meu pai com sua poderosa lança, era minha segurança. Procurei algo que poderia usar para me defender se necessário, olhei para o chão, havia um pedaço de um galho seco, o segurei pensando que muito bem poderia ser uma espada, como as que os cavaleiros o rei carregavam embainhadas em suas armaduras brilhantes.
  Foi muito rápido, de repente ouvi barulho de pisada no meio do mato seco e arbustos balançando. O meu coração disparou, as minhas pernas que já estavam imóveis, agora parecia colada no chão. A minha missão era pular na sua frente para o assustar e assim meu pai pega-lo par traz com sua lança. Com o calor, o suor corria em minha testa, ou era pela tensão que meu corpo passava, fiz a besteira de passar a mão, encharcando os meus olhos, por um momento tudo ficou embaraçado, porém ainda consegui ver o vulto do meu alvo saindo do meio dos arbustos, então pulei na clareira, feita pala passagem constante deles.
   Naqueles tempos difíceis que o mundo estava passando, até mesmo os animais da floresta estavam escassos, o senhor tinha avisado para os servos, que estava proibido caçar, principalmente os Javalis, que era a caça preferida dos nobres, esta era a principal daquela gente importante. Naquele dia, minha mãe tinha cozinhado a última porção de lentilha, fora restavam ainda dois pães que ficava em um cesto em cima da mesa. Meu pai naqueles dias difíceis, ou como sempre, pois era muito calado, estava muito apreensivo, depois de comermos o resto da panela, olhou para minha mãe, que  abaixou a cabeça ao seu olhar, como quem tinha passado a responsabilidade para ele. Ele se levantou e virou para mim fazendo um gesto com a cabeça para me levantar. — Vamos caçar.
   Ali estava eu, nem acreditava que tinha tomado àquela atitude, o Javali quando me viu tentou parar sua corrida, freando  com suas quatro patas, levantando a poeira da terra seca da floresta, olhou para os lados rapidamente para ver a melhor rota de fuga. Era um animal adulto, com aproximadamente 150 quilos, ou seja, cinco vezes o meu peso, porém contrariando os nossos planos, invés de fugir olhou fixamente para o seu oponente a sua frente, abaixou a cabeça, e agora com minha visão voltando ficar mais nítida, pude ver suas enormes pressas, seus pelos da sua nuca se levantando e a terra sendo jogada para traz por suas patas traseiras, tinha ele tomado a decisão de atacar ao invés de correr em fuga.
   O tempo parecia estar parado, já não ouvia mais o barulho da mata, somente o meu coração batendo, sabia que correr seria inútil, pois era dez vezes mais rápido do que minhas fracas pernas, e parecia que ele também sabia desses detalhes. Olhei para traz dele e não via meu pai, voltei meu lentamente para o meu inimigo, ele abriu a boca como quem tinha tomado a decisão de atacar, segurei firme o pau que estava em minhas mãos, caso fosse usa-lo. Lembrei-me da oração que minha mãe fazia toda noite para os cinco filhos antes de colocar-nos para dormir. Porém nem tempo de lembrar-se da primeira palavra da oração deu antes daquela Besta me atacar, apenas coloquei os braços no rosto e ouvir um grito estarrecedor, quando os tirei rapidamente dos olhos para ver, vi meu pai saltando por cima do animal, com a lança erguida sobre a cabeça saindo do meio da floresta, colando o pobre infeliz ao chão com apenas um golpe de sua lança.
  O relógio agora voltava a rodar, o animal nem gritou, apenas tremia no chão, meu pai em cima dele com um sorriso no rosto, gritou com uma alegria contagiante.
   — Temos o jantar.
   — vamos limpar ele para ficar mais leve. Fez uma fogueira com galhos secos para queimar os pelos, e depois o abriu e retirou a barrigada. Olhou para mim e disse.
   — leve a lança, vou carregar a nossa comida da semana.
   A noite já se anunciava, mais ainda devido a tempestade que se aproximava, pois já podia ouvir os trovões vindo ao longe, a floresta se agitava ainda mais.
  — apure os passos menino, se não vamos pegar chuva.
  Porém meu pai mal podia andar com todo aquele peso nas costas, olhei para as fretas das arvores para  ver quando as nuvens escuras que  nos já nos cobria, quando um clarão seguido por uma explosão se deu a poucos passos de nós, meu pai me empurrou com uma das mãos gritando para correr, um barulho se seguiu de arvores quebrando atrás de nós, um enorme carvalho desabou, fomos empurrados pela força do vento de sua queda. Mais alguns passos pude ver o clarão que vinha de fora da floresta, estávamos em campo aberto, e conseguia ver a fumaça da chaminé da minha casa, os primeiros pingos começavam a cair, o vento era muito forte. O cachorro que estava preso latia como quem chamava minha mãe para ajudar-nos, ela rapidamente abriu a porta, e saiu no terreiro abanado às mãos nos apurando. Os quatro irmãos menores, duas meninas e dois meninos, ficaram na porta apreensivos, porém apesar da torcida, não deu tempo de entrar antes de tomarmos um banho a poucos metros da porta antes de entrar. Minha casa, como maioria dos camponeses, era uma construção grande, tinha duas peças na parte de baixo, uma peça grande a onde ficava o fogão e os utensílios de cozinha junto a porta, no meio da peça tinha uma armação feita de pau em forma triangular, com uma fogueira no centro, pendurado um tacho em cima dela, aonde era feito os cozidos e assados os animais, também nos aquecia no inverno, era espaçosa pois servia também para guardar sementes e fenos para os animais. A segunda era separada por uma parede, era aonde obrigava os animais no inverno, e em cima tinha um estrado aonde ficava as nossas camas, pois no frio o calor dos animais em baixo ajudava nos aquecer. Era feita com madeira roliça, e coberta por capim massapé, que também revestia as paredes laterais, que servia para proteger das temperaturas extremas do inverno ou verão.
   Estávamos todos sentados em volta do fogo, parte do Javali estava assando, o cheiro tomava conta do ambiente, fazia muito tempo que não comia carne, estavam todos ansiosos. A chuva caia ainda forte no lado fora, os trovões e relâmpagos fazia seu espetáculo, quando no meio do barulho do temporal, gritos cortaram a noite, todos ficamos atônicos sem compreender o que estava acontecendo, minha mãe que estava a porta limpando as utensílios que tinha sido usado para preparar a carne, correu junto de nós, meu pai pegou a lança ao lado da porta, com a outra mão preparava para abrir a porta. Levantei-me e posicionei em um lugar que dava vista para porta quando fosse aberta, era tempo de guerra, muitos saqueadores andavam na região, porém agora houve batida na porta, e uma voz no lado de fora gritou.
    — Abra em nome do rei! Abra em nome do rei!
   A porta foi aberta seguida por um forte relâmpago, uma figura de porte grande estava do lado de fora, com o clarão apresentou um cavaleiro com uma armadura que brilhou, estava com um elmo em sua cabeça que cobria todo seu rosto, com apenas uma abertura nos olhos, com a chuva que batia junto com os clarões, parecia uma figura mística, todos ficamos assombrados com a visão. Podia ver o desenho do Golfinho na armadura do cavaleiro, simbolizando que era do reino, a espada embainhada mostrava que estava em paz, porém não entrou de imediato, mais afastou do lado mostrando que com ele tinha pelo menos uns dez juntos, porém todos afastaram dando preferência a um ultimo que tinha uma armadura ainda mais bela, com tons em escarlate, com o desenho do Golfinho em relevo de azul, o seu elmo tinha no alto o contorno de uma coroa, foi o primeiro a entrar, meu pai dobrou um do joelho diante dele, minha mãe que estava sentada nos abraçando, se levantou. Todos entraram, na nossa inocência, ficamos maravilhados mal sabíamos o viria a seguir.
   Como uma peça do destino, o rei abrigava a entrar na casa de um pobre camponês em busca de proteção, algo impensável para um rei em circunstância normal. O cavaleiro que bateu na porta retirou seu elmo, era um homem já de idade, com as marcas das batalhas vividas no rosto, que podiam ser vistas devido as cicatrizes, tomou a frente.
    — Devido ao dilúvio que cai ai fora, vai ter o privilégio de hospedar o rei. — Disse ele.
   —  Vi que tens um estábulo, guarda as cavalos! — Deu a ordem ao meu pai.
  Meu pai saiu no meio da chuva para atender a ordem, o rei retirou o elmo, e passou a olhar ao redor, verificando o local com um olhar de desprezo, porém todo o tempo não deu a palavra, todos retiram os elmos e as capas molhadas e se achegaram junto do fogo. O mesmo cavaleiro que deu a ordem ao meu pai, olhou para minha mãe e disse.
    — Adivinhou que o rei viria, preparando a comida real.
    — Não sabia que nessa época de fome, as caças são proibidas para servos?
   — Ponha o resto ao fogo, todos estão famintos!
   Minha mãe nos puxou em direção a escala, que dava acesso a parte de cima do cômodo dos fundos, onde ficava as camas, subiu as escadas enquanto olhávamos para trás  vendo os cavaleiros atacando o Javali assado, meu pai retornava de fora, olhou para minha mãe dando ordem com a cabeça  para  ela subir também. Nossa mãe nos colocou para dormir, deitava todos juntos em uma cama feita de palha, porém com a fome e as risadas daqueles homens ficava difícil dormir, porém o dia tinha sido cansativo acabei caindo no sono. Acordei no meio da madrugada, a chuva já tinha acabado, as vozes também, a vela feita de sebo ainda estava acessa, indicando que meus pais não estava na cama, da parte da frente  do cômodo de dormir era aberto, ao chegar na beirada podia ter visão do salão, notei que meus pais estavam conversando ao redor do fogo, os visitantes tinham indo embora junto com a chuva, e pior a janta também. Restou apenas os ossos, que minha mãe agora cozinhava no caldeirão que seria nosso jantar na madrugada.
  Há meu nome! Guillaume Cale, naquela noite vi com meus olhos como os camponeses eram humilhados nas suas próprias casas, vinte anos depois pude devolver a decepção daquela noite. A rebelião começou a 28 de Maio de 1358, na aldeia de Saint-Leu-sur-Oise, depois de uma reunião de camponeses. Os ânimos exaltaram-se, a indignação contra a classe nobre subiu de tom. Os homens reuniram as armas que podiam e invadiram a casa do senhor local, assassinaram a família e incendiaram a propriedade. A violência propagou-se às aldeias vizinhas e, dias depois, o motim era generalizado, envolvendo milhares de camponeses em fúria. Finalmente pude devolver a visita ao rei Deifim Carlos V no seu palácio, porém não nos recebeu com um jantar.